Ficheiro de citações bibliográficas sobre a obra de Fernando Pessoa

Vida

«O Campos whitmaniano cantou a vida por bebedeira. As suas sensações desenfreadas, a sua emotividade pânica jamais passaram da esfera da inteligência: «Orgia intelectual de sentir a vida!».Intelectual, apesar do rótulo de sensacionista, a poesia de Campos é-o tanto como a de Caeiro. Justifica-a o desejo de afogar o tédio, de suprimir pela embriaguês a dor de viver, «angústia no fundo de todos os prazeres», a «saciedade antecipada na asa de todas as chávenas» - expressões da «Passagem das Horas». «Vale a pena sentir para ao menos deixar de sentir». Campos sentiu como Whitman para deixar de sentir como Campos. Mas o tour de force malogrou-se: depois de 1916, Campos virá a ser o poeta do cansaço, da abulia, do vazio, inquieto e nauseado.»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 67.

Ver Campos sensacionista

Viajar

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«A partida, real ou metafórica, (tomar uma decisão qualquer é também partir), põe-nos o mistério frente a frente, injecta-nos "o medo ancestral" do desconhecido; o que fazemos é definitivo, irremediável, porque "nunca se volta", ao regressar seremos outros e outro o lugar donde partimos. Daí o desprezo, misturado de inveja, por aqueles que não experimentam isto, os bons burgueses embotados que "não sentem o que há de morte em toda a partida, / de mistério em toda a chegada, / de horrível em todo o novo...". A poesia da viagem transforma-se na grave poesia do cais, carregada de sonho e sentido. Campos prefere ficar no cais, vendo os paquetes que entram e saem do Tejo, meditando no "mistério alegre e triste de quem chega e parte". Campos prefere ficar no cais, [...] transpondo o cais em que está para a esfera dos símbolos, visionando um "Cais absoluto", fora do espaço e do tempo, donde viemos porventura quando nascemos, onde também haverá gente anónima que sofre o mistério de partir e de chegar. O símbolo é comum ao Pessoa ortónimo; também este fica para sempre num cais metafórico [...]
De novo o tédio envolve o poeta, crucificado na monotonia dum existir ocioso. O espectáculo da própria inércia, os sonhos malbaratados, a inconsequência de tudo fazem-no odiar-se a si próprio, ser grotesco, rei de opereta, «palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro...»»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 125-126.
* Almada Negreiros (gare marítima da Rocha do Conde de Óbidos).

Ultimatum

«A grande peça deste número único do Portugal Futurista, ao pé da qual tudo o resto parece esquálido e sem cor, incluindo as palavras provocantes de Almada, é o Ultimatum de Álvaro de Campos. Não é uma obra-prima. Este texto combativo é um texto extremamente anti-social, agressivo, quase monstruoso, com a sua patente falta de unidade de tom. Começa como um panfleto e acaba em profissão de fé. Abre com um ataque de cólera e fecha com um impulso de esperança fervorosa. Entre os dois, uma longa dissertação num estilo demonstrativo, didáctico, cheio de «primeiro» e «segundo», «alínea a» e «alínea b», raciocínios lógicos e fórmulas algébricas. Mas não há dúvida de que isso veio também espontaneamente; e o autor tinha as suas razões para não polir o texto. Pessoa é capaz de, sob o nome de Bernardo Soares, escrever uma prosa maravilhosamente harmoniosa, sem nada que fira ou que ranja; mas aqui põe Campos a escrever à machadada e à martelada. Faz dele um pensador brutal, desajeitado e surdo, que ele nunca foi antes e nunca mais voltará a ser a esse ponto: um atleta do pensamento e do estilo. Como se verdadeiramente não houvesse sido ao próprio Campos, mas ao seu emissário - heterónimo do heterónimo - que ele tivesse desta vez confiado a pena - ou antes, o teclado (sabemos que Campos bate directamente os seus textos à máquina de escrever).»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 347-348.
Ver Super-homem

Unidade

«Acontece que a obra-vida de Pessoa tem uma tremenda unidade. Quem a quiser entender como obra de um blagueur, fica aquém do seu entendimento. Quem a procurar compreender na sua densidade críptica à luz de teorias, crenças e práticas mais ou menos ocultas - passa para lá da possibilidade de a alcançar.
Não é a nível das opiniões emitidas por Pessoa, ou por qualquer um dos seus outros, que se pode procurar o fio íntimo da coerência da obra mas sim numa atitude de fundo que, essa, está para além das manifestações, propositadamente várias, de uma personalidade que se quis poliédrica: a expressão lúdica de um temperamento «fundamentalmente religioso», como afirmou ser. Esse ludismo impediu-o de se tomar demasiado a sério nas manifestações da sua religiosidade e essa religiosidade deu sempre aos seus exercícios lúdicos um alcance de «ritual dramático». Foi assim que aquilo que chamo o romance-drama-em-gente saltou do espaço do profano (da brincadeira avulsa) para o do sagrado: é um «faz-de-conta» ritual a que Pessoa dedicou toda a sua vida e que até, de certo modo, foi a sua vida mais real.»
Teresa Rita Lopes. Pessoa por Conhecer - Roteiro para uma expedição. Lisboa: Estampa, 1990, p. 56.

Tempo

«[...] o tema do fluir do tempo, expresso normalmente pelo símbolo do rio, é comum a Caeiro, Álvaro de Campos e Fernando Pessoa.
Caeiro sabe que as bolas de sabão são "claras, inúteis e passageiras como a natureza"; pede à ave que passa que o ensine a passar; contenta-se hedonisticamente com "sentir a vida correr por ele como um rio por seu leito" e goza a constante mudança das coisas como fonte de variedade que é: «a Natureza de ontem não é Natureza. / O que foi não é nada, e lembrar é não ver».
Sem a calma olímpica do Mestre, Campos é nervoso e exclamativo: «Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!» repisa as palavras para sugerir o peso dos instantes que passam: «Parece que passam sem ver-me os instantes, / Mas passam sem que o seu passo seja leve...». Dirige-se ao rio como companheiro de viagem: «Água do rio, correndo suja e fria, / Eu passo como tu sem mais valer...». [...]
[...] Para Fernando Pessoa recordar não é reviver, é apenas verificar com dor que fomos outra coisa cuja realidade essencial não é permitido recuperar. Vimos da sombra e vamos para a sombra. Só o presente é nosso, mas o que é o presente senão a linha ideal que separa o passado do futuro?»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 94-96

Teosofia

«Numa carta de 6 de Dezembro de 1915 a Sá-Carneiro, que ficou por acabar - o que explica ter sido encontrada - Pessoa explicava as circunstâncias que o tinham levado a interessar-se pelo ocultismo. Um editor de Lisboa queria criar uma «colecção teosófica e esotérica», composta no essencial por obras inglesas. Conhecendo a sua competência, confiou-lhe a respectiva tradução. Entre os autores a traduzir contavam-se nomeadamente Helena Blavatsky fundadora da escola teosófica contemporânea, e Annie Besant, que adquiriu mais tarde uma reputação universal ao descobrir e apadrinhar Krishnamurti. «Tive de traduzir livros teosóficos. Eu nada, absolutamente nada, conhecia do assunto. Agora, como é natural, conheço a essência do sistema. Abalou-me a um ponto que eu julgaria hoje impossível, tratando-se de qualquer sistema religioso. O carácter extraordinariamente vasto desta religião-filosofia; a noção de força, de domínio, de conhecimento superior e extra-humano que ressumam as obras teosóficas, perturbaram-me muito. Coisa idêntica me acontecera há muito tempo com a leitura de um livro inglês sobre Os Ritos e os Mistérios dos Rosa-Cruz. A possibilidade de que ali, na Teosofia, esteja a verdade real me «hante».[...] Ora, se V. meditar que a teosofia é um sistema ultracristão - no sentido de conter os princípios cristãos elevados a um ponto onde se fundem não sei em que além-Deus - e pensar no que há de fundamentalmente incompatível com o meu paganismo essencial, V. terá o primeiro elemento grave que se acrescentou à minha crise. Se, depois, reparar em que a Teosofia, porque admite todas as religiões, tem um carácter inteiramente parecido com o do paganismo, que admite no seu panteão todos os deuses, V. terá o segundo elemento da minha grave crise de alma. A Teosofia apavora-me pelo seu mistério e pela sua grandeza ocultista, repugna-me pelo seu humanitarismo e apostolismo [...], atrai-me por se parecer tanto com um «paganismo transcendental» [...]. É o horror e a atracção do abismo realizados no além-alma...»»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 314-315.

Tédio

«O tédio, «ce monstre délicat» que Baudelaire ensinou a cantar, é o reverso duma fome de Absoluto que tudo contraria ironicamente. O desejo de viajar, correr mundo, renovar constantemente sensações, corresponde à necessidade de inebriar a alma insatisfeita de quem não encontra na vida motivo para viver. De facto, viajar, na imaginação do poeta, é "ser outro constantemente", "viver de ver somente", não pertencer nem a mim. O espectadorismo, o alhear-se de si, quadram à psicologia dum homem torturado pela auto-análise e inepto para a acção. Mesmo assim é preciso dar os primeiros passos, fazer as malas, subir a prancha... E tudo isso custa tanto! Qualquer coisa prega Fernando Pessoa ao lugar onde está; não o ter aí raízes, porque em toda a parte é um desenraizado; mas o medo de decidir-se, de comprometer-se, o apego ao que se tem, embora o que se tem seja tão pouco [...].»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 124