Ficheiro de citações bibliográficas sobre a obra de Fernando Pessoa

Super-homem

«Ao abrir o caminho, o poeta compromete-se com ele. Ao invocar o super-homem, ele passa a sê-lo também. A consciência que Pessoa tem da sua própria grandeza, ele, o «Super-Camões», novo Shakespeare, reincarnação do «Encoberto» D. Sebastião, dá um tom de sinceridade comovente a este Ultimatum, justificando os seus excessos. A voz estridente de Campos, aquela voz que para Pessoa é uma maneira de se comprometer a fundo com a sua própria palavra, nunca mais se fará ouvir desta maneira, nem em verso nem em prosa, para nos chamar àquele excesso de humanidade que é o contrário do «humanismo» e do «humanitarismo». Mas talvez a amálgama dos textos escritos depois de 1917, que constituem a «obra» de Pessoa prosador, não seja mais que os «trocos» sensatos e modestos dessa mensagem inicial divulgada em altos brados. Para ele, também o Homem, tal como a nossa civilização judaico-cristã o fez, tem de ser ultrapassado. O Super-Homem será transpessoal - «Síntese-Soma», múltiplo e universal: é o programa de vida e de trabalho do poeta e do ensaísta, que se propõe pensar tudo «de todas as maneiras».
A conclusão deste Ultimatum lembra Nietzsche. Mas o Super-Homem de Campos é bem diferente de Zaratustra. Pessoa acusa Nietzsche de ser um falso pagão, um falso grego, um falso mediterrânico, um «Baco alemão», de ser, no fim de contas, um cristão que se ignora. Reconhece-lhe contudo uma forma de grandeza, a de ter afirmado «que a alegria é mais profunda que a dor, que a alegria quer profunda, profunda eternidade». O que resta de romantismo no desejo de poder nietzschiano não é senão uma forma perversa do desejo de universalidade de Campos - e de Pessoa. Ser um denominador comum a todas as sensibilidades e a todos os pensamentos é, para ele, para eles, o meio de ultrapassar a natureza e a condição do homem.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 353-354.