Ficheiro de citações bibliográficas sobre a obra de Fernando Pessoa

Outro


«O poeta estranha-se a si próprio: «Meu ser / tornou-se-me estranho». O pretenso eu afigura-se-lhe multíplice, fragmentário, infinidade de estados psíquicos, «simples colecção de momentos», na expressão de Proust. Daí a sensação, não de viver, mas de sofrer passivamente a vida, como
«Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim.»
Na poesia ortónima, Pessoa chega a pensar que não passa de ponto de convergência de vários tempos-seres, de tal modo se sente vivido pelo tempo: «Um dilatado e múrmuro momento / De tempos-seres de quem sou o viver?». E Soares julga-se o palco de sonhos independentes dele, cousificados, que lhe surgem de fora «como o eléctrico que dá a volta na curva extrema da rua...»
Quando tentamos reconstituir por dentro o passado, topamos dolorosamente com o vazio. O nosso "alguém" é "diverso e sucessivo". Campos fala do outro, daquele que foi vinte anos atrás, como dum desconhecido; diverte-se a imaginar as duas figuras só por ironia com o mesmo nome - o Campos antigo e o moderno -, cruzando-se na rua e olhando-se com indiferença.»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 97-98