Ficheiro de citações bibliográficas sobre a obra de Fernando Pessoa

Ficções

««Quem sou? Quantos sou?» é angustiada pergunta que ao longo de toda a sua obra escutamos ressoar, e que, nestes termos, se exprimiu pela voz de Bernardo Soares no Livro do Desassossego em que Pessoa escrevia-lia a sua vida.
Não mais nos é dado que contar o conto, a ficção que somos no intervalo de uma vida: Ficções do Interlúdio foi o título que Pessoa escolheu para o conjunto das vozes dispersas desses Outros em que se desdobrou, «ficções do intervalo» chamou precisamente B. Soares à vida de cada ser.
Pela pena de um outro dos seus prosadores, António Mora, tentou apurar «quantos géneros de ficções há». Distinguindo «as ficções que formam a religião ou a metafísica, das que «formam a moral e os costumes» e ainda das que «formam a estética», atribui às últimas a função de nos guiar «nas nossas relações com nós-próprios».
Essa a função do romance-drama que constitui a «pequena humanidade em que se desdobrou.
Noutro texto, também inédito, escreve: «Três são as ordens de ficções que fabricamos para que possamos viver», enunciando, por ordem crescente de «complexidade», as da memória, da imaginação e da «inteligência que é a percepção de que não pode haver o absoluto, que por sua natureza é irreal».
Tem este espírito sedento de verdade que se haver com a ficção que tudo, afinal, é: «Tudo é só fingir que é» (exclama, pela voz de Fausto). Ele próprio sabe que é mentira, que o corpo que lhe aconteceu ser é, como diz Soares, um «fingimento orgânico». A sua «grandeza nativa» tem de estar disfarçada sob «os véus que [lhe] impõe a urgência de viver».
António Mora faz a diferença entre «ficção» e «erro»: «uma ficção é um erro relativo. Um erro é uma ficção absoluta.» E acrescenta: «Relativamente ao sistema a que pertence, a ficção é uma verdade; o erro, aí, é a desharmonia de ficções».
Ora tudo está, pois, em zelar pela harmonia entre si dessas ficções a que um sistema dará coerência e, por isso, «verdade». E como «a perfeição relativa» (a única que ao homem é permitida, na medida em que o «absoluto» lhe está negado) «tem como característica a pluralidade» , Pessoa cultiva as manifestações do que chama o seu «vasto ser» . Para saber quem é, mergulha na leitura do livro do seu ser: «Por isso, alheio, vou lendo / Como paginas, meu ser» . Mas mergulhar no «abismo de ser muitos»  não lhe revela quem «foi» e, muito menos, quem é: a unidade (como a perfeição) é inalcançável. Às vezes, sobrevem-lhe o cansaço de ser «muitos», de não ser mais, afinal, que uma «encruzilhada» («ponto de encontro» escreveu, noutro sítio). Outras vezes, reage com uma pirueta a esse incómodo: é «uma antologia», esse livro através de cuja leitura busca entrever quem é.»
Teresa Rita Lopes. Pessoa por Conhecer - Roteiro para uma expedição. Lisboa: Estampa, 1990, pp. 81-82.