Ficheiro de citações bibliográficas sobre a obra de Fernando Pessoa

Dramaturgo

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«O poeta, o contemplativo, o fora do espaço e do tempo, esse compunha, escrevendo-vivendo, o seu romance-drama-em-gente. Lembremos, rapidamente, que, justificando a sua expressão «drama em gente», que usou para caracterizar o conjunto dramático constituído pelos Heterónimos, Pessoa reivindicou sempre o estatuto de dramaturgo. Acrescentei «romance» a essa expressão porque as personagens que habitam este «drama em gente» não se manifestam só através do monólogo dramático: usam, por vezes, uma linguagem narrativa para contar os outros ou a si próprias, da mesma forma que o seu criador Pessoa longamente lhes compôs as feições, as atitudes, as vidas, através de escritos inúmeros. Para sabermos quem foi, por exemplo, Caeiro, tal como no «romance-drama» foi criado, teremos que reunir narrativas do próprio Pessoa, de Álvaro de Campos, de Ricardo Reis, de António Mora e, além disso, de outras «personalidades literárias» que a ele também se referiram: I. I. Crosse, por exemplo.
O «romance-drama-em-gente» poderá assim ser entendido como um imenso romance que Pessoa foi escrevendo ao longo da vida, em que as personagens se manifestam, às vezes, em discurso directo - que poderá ser em prosa ou verso. Este me parece, portanto, ser o grande livro, o Livro (no sentido mallarmeano) que o Poeta deixou sob a forma de disjecta membra, como costumava dizer, ao referir-se à sua obra. Tarefa arriscadíssima, e infindável, será a de procurar reunir os cacos do vaso. Ou serão antes, os fragmentos que nos ficaram, peças de caleidoscópio, propiciatórias de várias combinações?
Seja como for, a unidade da obra do Poeta só poderá existir quando se reconstituir, que mais não seja mentalmente, abstractamente, esse todo orgânico estruturado e irrigado por um «coração de ninguém» a que é preciso captar o pulsar.»
Teresa Rita Lopes. Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. Lisboa: Livros Horizonte, 1993, pp. 38-39.
* pintura de Hermenegildo Sábat