Ficheiro de citações bibliográficas sobre a obra de Fernando Pessoa

Missão

«Essa íntima convicção de que tinha contas a prestar à humanidade, em geral, ao país a que escolheu pertencer, em particular, e, em última instância, «a si-próprio futuro» - é uma constante dessa obra que lhe fez de vida. Outra constante é essa sua forma de se exprimir como poeta dramático. Também ao longo da sua existência nunca desmentiu o que de si escreveu na carta a Côrtes-Rodrigues de 19/1/1915: que era «fundamentalmente um espírito religioso». E por isso - explica nessa longa carta - se tinha desinteressado de toda a atitude literária que fosse pura blague, como o lançamento do Manifesto interseccionista, fruto de um «plebeísmo artístico insuportável de querer épater». Afirma: «Devo à missão que me sinto uma perfeição absoluta no realizado, uma seriedade integral no escrito.»
Essa «missão» tinha que ver com as suas responsabilidades como cidadão do mundo - «dever a cumprir arduamente, monasticamente, sem desviar os olhos do fim criador-de-civilização de toda a obra artística» - e como cidadão português: «porque a ideia patriótica, sempre mais ou menos presente nos meus propósitos, avulta agora em mim; e não penso em fazer arte que não medite fazê-lo para erguer alto o nome português através do que eu consiga realizar.» E é muito significativo que «a obra Caeiro-Reis-Campos» (escreve) lhe apareça como dentro deste espírito, e não do outro, grosseiro, de blague, que confessa tê-lo animado noutras circunstâncias. Acrescenta, a propósito dessa «obra» múltipla: «Isso é tudo uma literatura que eu criei e vivi, que é sincera, porque é sentida, e que constitui uma corrente com influência possível, benéfica incontestavelmente, nas almas dos outros.» E acrescenta, mais adiante: ««Em qualquer destes pus um profundo conceito da vida, divino em todos os três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de existir.»
O génio é sentido como missão mas também como «maldição», num texto inédito, ainda em fase de rascunho, que parece ser uma evocação de Mário de Sá-Carneiro: «Tu regressaste ao Deus que te mandou/Sofrer a vida», escreve. E acrescenta, adiante: «... os deuses, em sua ira criadora/Lançam o génio como maldição» É um texto que começa em prosa e ganha asas em verso. Em prosa ainda, escreve: «O homem de génio tem emoções e desejos de deus, com corpo e alma de homem - daí a sua angústia eterna.»
Noutro texto (inédito, creio) em que parece meditar sobre a sua própria condição, escreve: «Uns nascem grandes, outros alcançam a grandeza e outros têem que ser grandes à força».»
Teresa Rita Lopes. Pessoa por Conhecer - Roteiro para uma expedição. Lisboa: Estampa, 1990, pp. 57-58.