Ficheiro de citações bibliográficas sobre a obra de Fernando Pessoa

Romance-Drama

«O romance-drama foi concebido como uma terapia, individual e civilizacional. Como todos os meninos, Pessoa gostava de brincar aos médicos...
Campos fez o papel do «doente, - que ele, Pessoa, era: um esquema do punho de F. Pessoa o diz claramente . Para os curar (a ele e a todos os que fingem a dor que ele «deveras sente») inventou o Neopaganismo, com o seu teórico, Mora, o seu Mestre, Caeiro, e o seu coadjuvante Reis, pilares-mores desse templo. Para se tentar curar dessa doença de ser não só judeu mas cristão-novo, de mal com o seu corpo, fonte de pecado, e com o seu espírito, insone, confuso, indisciplinado, Pessoa deu à luz, catarticamente, Álvaro de Campos. Para se livrar do medo de enlouquecer como a avó paterna, Pessoa fez com que Campos enlouquecesse em seu lugar: pôs mesmo, catarticamente o dedo nessa ferida, nesse medo: «Cá está ela!» exclama Campos, num poema - «Tenho a loucura aqui, exactamente na cabeça!»
Através de Campos, de Reis, de Caeiro, Pessoa exorcizou os seus medos. Representou-os para deles se livrar, como diz nesta estrofe:
Ficção num palco sem tábuas
Vestida de papel de seda
Mima uma dança de mágoas
Para que nada suceda.
Nesse palco em que se tornou, fê-los viver em seu lugar essa vida e essa morte que igualmente o aterravam: porque Caeiro morreu em 1915 tuberculoso, se livrou do mal que vitimou o pai e o irmão pequeno e cujo fantasma o perseguiu a vida toda; porque Campos tocou com as próprias mãos o sítio da sua loucura, a ela pôde escapar; porque Reis e também Campos viveram com elegância amores homossexuais pôde livrar-se desse medo que confessa num diário íntimo. Através de Campos venceu o medo do outro, enquanto semelhante passivo ou interlocutor, e teve «gestos fora do seu corpo»: gestos e palavras obscenas mesmo, gestos e palavras de amor. Campos sentava-se à mesa de jantar de um quotidiano burguês com uma qualquer Daisy de que apenas sabemos que tocava piano, que tinha umas mãos cuidadas «postas com boas maneiras inglesas sobre a toalha». Também Campos fez as viagens de que Pessoa confessa ter pavor. E para exorcizar a morte, longamente a encena na pessoa desse judeu errante de si próprio, sempre com a mala na mão, no cais de uma qualquer viagem «física ou psíquica», na gare do Comboio Definitivo, direcção: «Lá bas, je ne sais où...»
Na pessoa de Caeiro tentou perder o medo do oculto, de todo o oculto de que o terror confessado das trovoadas era sinal apenas. Lembremo-lo quando atribui, no IV.º poema do «Guardador de Rebanhos», aos trovões e relâmpagos contorno de presenças quotidianas: «um pedregulho enorme», uma grande cabeça que diz «não» - e acrescenta «não, eu não tinha medo», como um menino que se gaba de já não temer o escuro.
Purgando-se do seu lastro de feridas e medos, o imaginamos na escalada para seres cada vez mais perfeitos, mais despojados das quotidianas penas: Campos, o que carrega todos os fardos e todas as feridas de Pessoa, no primeiro patamar; no segundo, Reis, o mestre-aluno de ensinar e aprender a serenidade dos deuses; e no último, entrevemos esse que foi criado para ser «uma infância e uma libertação»: Caeiro, claro.
Teresa Rita Lopes. Pessoa por Conhecer - Roteiro para uma expedição. Lisboa: Estampa, 1990, pp. 180-181.
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