Ficheiro de citações bibliográficas sobre a obra de Fernando Pessoa

Heterónimos

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«O que conhecemos de Pessoa são peças soltas de longo romance-drama-em-gente (adaptando a conhecida expressão de «drama em gente» com que definiu a sua obra) que ele foi escrevendo para viver e vivendo para escrever. É preciso nunca esquecer que Pessoa nunca encontrou esse «caminho para a vida, que é a vida», de que fala Campos. Consciente embora, sempre pela voz de Campos, de que «é preciso continuar a viver», viveu intensamente, multiplicadamente mas por interpostas pessoas. Através delas até teve a vida comum das criaturas que realmente existem: afrontou corpo a corpo o acontecer, como Álvaro de Campos, teve «o corpo deitado na realidade», como Alberto Caeiro e, além de uma filosofia privativa, um estatuto social de «doutor», como Ricardo Reis (foi médico e até «professor de humanidades num importante colégio americano»). Isto para só falar desses «outros» a que concedeu a carta de alforria de heterónimos. De facto, em muitas sombras se desdobrou, a que deu nome e vida e obra, mas só a estes três - por razões que ele lá tinha e até enunciou - concedeu a total libertação de «voar outro» (expressão que Pessoa usou para definir o seu desgarrar-se em heterónimos). Aos outros concedeu apenas o estatuto de «personalidades literárias», segundo a sua própria designação. Dir-se-ia que estas últimas (algumas perpassam por este volume: Charles Robert Anon, Alexander Search, Thomas Crosse, Bernardo Soares...) são sombras que o projectam para fora de si mas que não adquirem golpe de asa próprio para «voar outro». Multiplicam-no apenas na horizontal, apenas como um leque que se abre.»
Teresa Rita Lopes. Pessoa Inédito. Lisboa: Horizonte, 1993, p.17
*Miguel Yeco. O teatro íntimo do ser. 1986.