Ficheiro de citações bibliográficas sobre a obra de Fernando Pessoa

Viajar

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«A partida, real ou metafórica, (tomar uma decisão qualquer é também partir), põe-nos o mistério frente a frente, injecta-nos "o medo ancestral" do desconhecido; o que fazemos é definitivo, irremediável, porque "nunca se volta", ao regressar seremos outros e outro o lugar donde partimos. Daí o desprezo, misturado de inveja, por aqueles que não experimentam isto, os bons burgueses embotados que "não sentem o que há de morte em toda a partida, / de mistério em toda a chegada, / de horrível em todo o novo...". A poesia da viagem transforma-se na grave poesia do cais, carregada de sonho e sentido. Campos prefere ficar no cais, vendo os paquetes que entram e saem do Tejo, meditando no "mistério alegre e triste de quem chega e parte". Campos prefere ficar no cais, [...] transpondo o cais em que está para a esfera dos símbolos, visionando um "Cais absoluto", fora do espaço e do tempo, donde viemos porventura quando nascemos, onde também haverá gente anónima que sofre o mistério de partir e de chegar. O símbolo é comum ao Pessoa ortónimo; também este fica para sempre num cais metafórico [...]
De novo o tédio envolve o poeta, crucificado na monotonia dum existir ocioso. O espectáculo da própria inércia, os sonhos malbaratados, a inconsequência de tudo fazem-no odiar-se a si próprio, ser grotesco, rei de opereta, «palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro...»»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 125-126.
* Almada Negreiros (gare marítima da Rocha do Conde de Óbidos).