Ficheiro de citações bibliográficas sobre a obra de Fernando Pessoa

Paganismo


«No concernente a determinados temas, Fernando Pessoa dá-nos tão fortes argumentos para demonstrar uma tese como para defender a tese contrária. O seu pensamento é ironicamente ambíguo.
Uma das constantes definidoras desse pensamento é o anticristianismo (ou, como prefere dizer o poeta, «anticristismo»). Alguns fragmentos insertos no presente volume elucidam-nos sobre o propósito de constituir com os heterónimos e Fernando Pessoa ortónimo uma escola pagã. Mais: o propósito de, através de escritos ortónimos e heterónimos, em prosa e verso, restaurar o paganismo autêntico. Todavia ainda aqui observamos uma cisão: a escola pagã inventada por Fernando Pessoa compreende individualidades com posições mentais diversas, em que se matiza o paganismo ou o «anticristismo».
Abrange, com efeito, dois ramos: um deles, o ortodoxo, representado por Alberto Caeiro e o doutrinário António Mora, considerando o cristianismo «produto da decadência romana», «mera heresia pagã», propõe-se a reconstrução total do paganismo; o outro, a que pertence Fernando Pessoa «ele próprio», aceita como inextirpável a sensibilidade moderna, em que vê o resultado mórbido da religião cristã; «assim, em vez de aspirar a, ou julgar mesmo possível, uma reimplantação do paganismo, julga que o paganismo serve apenas para base eterna da nossa civilização, devendo porém servir de disciplina às emoções criadas pelo cristismo». (As perguntas, à margem dos fragmentos, fervilham. Quais as fontes do anticristianismo de Pessoa? Quais as fontes do seu conhecimento e concepção do paganismo ? Em que medida os poetas heterónimos obedecem a um programa inicial, por vago que fosse? Ou até que ponto o plano da «escola pagã» na poesia e no pensamento nacionais se conforma já, lucidamente, à realidade inelutável, insofismável, dos poetas heterónimos aparecidos no palco interior de Pessoa?)»
Jacinto do Prado Coelho. Prefácio a Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação de Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1966, p. XXII-XXIII