Ficheiro de citações bibliográficas sobre a obra de Fernando Pessoa

Espólio

«Para melhor entender a situação dos inéditos pessoanos é preciso dizer que Pessoa escrevia, em geral, em folhas soltas, aproveitando qualquer pedacinho de papel à mão, algumas vezes até envelopes usados. Quero crer que essas folhas soltas estariam, quando Pessoa morreu, arrumadas à sua maneira dele. (O criador, por mais desordenado que pareça, tem critérios e precauções de sobrevivência mais ou menos conscientes.) As posteriores incursões na Arca, com fins de pesquisa ou de inventariação, devem ter desfeito toda essa frágil coerência.
Quando em 1968 se iniciou o arrolamento oficial do espólio pessoano, executado pelos funcionários para isso designados, a arca já tinha sido longamente revolvida por muitas e variadas mãos, animadas, umas, da intenção de arrumar, outras de investigar. Trinta e três anos assim permaneceu à mercê de curiosidades, voracidades e boas-vontades. (Como se sabe, Pessoa morrera em 1935).
Saliente-se, contudo, a sorte que foi esse arrolamento. Sem ele, em que situação estaria o Espólio a estas horas? Pode lamentar-se, isso sim, que os funcionários não tivessem sido devidamente orientados na sua tarefa por alguém que da obra pessoana tivesse um conhecimento miúdo e profundo. A arrumação a que procederam, vaga e hibridamente temática e por géneros literários, revela, quase sempre, uma atenção superficial ao documento. Os papéis foram arrolados peça a peça, como coisa de bric-a-brac, sem a preocupação de respeitar a sequência das folhas soltas, mesmo quando, às vezes, ela é evidente.
Além disso, em vez de refazerem conjuntos, os inventariadores desfizeram-nos, esfacelaram-nos, para cumprirem a sua função de arrumar os papéis por «envelopes». Assim estão ainda. O investigador que hoje se acerque do Espólio, agora na Biblioteca Nacional, se quiser, de facto, investigar e não apenas publicar avulsamente inéditos, tem que percorrer todos os documentos porque os envelopes, com vagos rótulos («Política», «Religiões», «Ocultismo», «Prosas breves», etc) são apenas gavetas mal arrumadas. É como ter guardado separadamente as peças de um relógio: aqui os parafusos, ali as molas, acolá os ponteiros... O pior de tudo é que as peças estão mal identificadas e as molas estão confundidas com os ponteiros, ou estes misturados com os parafusos...»
Teresa Rita Lopes. Pessoa por Conhecer - Roteiro para uma expedição. Lisboa: Estampa, 1990, pp. 14-15.