Ficheiro de citações bibliográficas sobre a obra de Fernando Pessoa

Espelho

«Essa fractura do espelho desse tempo em que fazia corpo com a sua imagem (em que era «idêntico» a si próprio) e em que, por isso, estava inteiro esse «boneco» que estreitava contra si, corresponde - a crer neste poema - ao momento em que foi expulso da infância. Nos dois poemas de Campos intitulados «Lisbon Revisited», um de 1923 e outro de 1926, leio que se afastou de vez da infância quando largou definitivamente desta «cidade da [sua] infância pavorosamente perdida», como diz no de 1926. (Dirá na Ode Marítima: «A minha infância passou como o fumo de um vapor no mar alto»). No poema de 1923, no interlúdio saudoso que é a penúltima estrofe, evoca esse espelho ainda intacto, onde ainda se «revia idêntico» que aqui aparece ser o «macio Tejo ancestral e mudo/Pequena verdade onde o céu se reflecte» - esse «céu azul» da infância, «eterna verdade vazia e perfeita». Afinal o espelho é, neste poema, o do «macio Tejo» - «onde o céu se reflecte». É ainda a união perfeita do Céu e da Terra, que é, neste caso, significativamente, para Pessoa-Campos, um chão de água: a «pequena verdade» do rio faz corpo com a «eterna verdade» do céu. Tudo está ainda uno, perfeito - paradisíaco.
Um gesto brusco do Destino - a morte do pai, o novo casamento da mãe, a partida para Durban - o excluiu do paraíso: pedrada que atingiu e partiu esse espelho em que se «revia idêntico». A partir de então deixou de se «rever» numa imagem em que se amasse - ou se reconhecesse, o que é o mesmo -, ficou órfão da sua própria imagem. Talvez porque se sentiu privado, simultaneamente, do espelho desse «macio Tejo» e do olhar de amor desse regaço múltiplo de mãe-tias-avós em que, na infância, o vemos aconchegado (em Apêndice iconográfico). Ficou, portanto, condenado a uma imagem estilhaçada e a procurar apenas «um bocado» de si em cada «fragmento fatídico».
Teresa Rita Lopes. Pessoa por Conhecer - Roteiro para uma expedição. Lisboa: Estampa, 1990, p. 53.

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